sexta-feira, 3 de julho de 2015

O manejo da agressividade da criança: o que uma mordida quer dizer?



Juliana de Albuquerque Venezian; Bruna Ronchi Oliveira; Maria Augusta da Costa Araujo



RESUMO
A criança olha no espelho e ainda não sabe que aquela é sua imagem, para sabê-lo tem que se diferenciar, é através da descoberta do outro que isso acontece. Ela vai percebendo que existe um tempo de espera entre o que quer e o momento da satisfação. Neste tempo percebe que algo não depende do seu controle, isso é bem violento para o bebê, que fica a desejar e reage. A partir do seu desejo instaurado por essa falta reage com agressividade no mundo. A agressividade leva o ser humano a diferenciar um eu e precipitar um sujeito. Essa mesma agressividade possibilita a produção humana, na medida em que, concomitante a estes processos, ela será sublimada ou reprimida. Significa que a criança tem a possibilidade de transformar a agressividade em arte, palavras, atitudes, iniciativas. Para a criança que não adquiriu linguagem verbal, a mordida é um exemplo de uma tentativa de se comunicar, pode ser uma oportunidade que a criança tem de transformar em palavras aquilo que está querendo dizer, isso porque o ser humano conta com o recurso da palavra, da mediação simbólica.. Freud percebeu a grande importância que a boca tem tanto no início do desenvolvimento quanto nos sintomas que perduram até a idade adulta, e sistematizou o desenvolvimento psicossexual designando fases e denominando esta inicial de Fase Oral. É através da boca que a criança ri, chora, balbucia, aceita ou rejeita o alimento se relacionando assim com o mundo. Esta vai conseguir se expressar pela fala se houver investimento, e esse investimento é produzido na relação da criança com o Outro. Que atuação pode contribuir com estes processos? Traremos recortes da experiência no CEDEI/ HCFMUSP.
Palavas-chaves: Psicanálise; Infância – Creche; Linguagem



Todo homem carrega seus demônios em sua alma e o que faz uns
permanecerem nas palavras e outros recorrerem ao ato ainda
constitui um enigma. (...) O insuportável da alternativa que se
coloca no plano imaginário "ou ele ou eu" revela que é só a partir
de um simbólico que poderia haver um espaço para caberem dois.
Zilda Fabris

O CEDEI / HCFMUSP (Centro de Desenvolvimento de Educação Infantil) está vinculado ao Instituto da Criança e atende aos filhos das funcionárias do Complexo todo que tenham até três anos. Há, além da direção e coordenação pedagógica, uma equipe com profissionais das áreas de nutrição, enfermagem, serviço social e psicologia para dar suporte ao trabalho do educador. O psicólogo da instituição propôs um programa de estágio do qual participam duas psicólogas formadas, acompanhando, estudando e agindo no interior desta instituição. Há, junto às educadoras, reuniões pedagógicas da qual as psicólogas participam, este é um espaço de formação, e a idéia do presente trabalho surgiu a partir de uma destas reuniões que tratava da questão da agressividade, por ocasião da quantidade de mordidas entre as crianças, eventos que sempre provocam efeitos intensos na instituição. Tentaremos contextualizar tal situação pela lente da Psicanálise, da qual laçamos mão para lidar com as relações e conflitos, tanto na reflexão teórica quanto no posicionamento discursivo institucional.
Faremos um percurso teórico articulando conceitos que relacionam diferenciação eu/outro e agressividade, a mordida irá ilustrar esta articulação.

ORALIDADE
Sabemos que o primeiro contato da criança com o mundo se dá pela boca; é com este órgão que ela já se comunica, mesmo ainda sem ter fala, aceita ou rejeita alimentos, sorri, chora, balbucia. Além disso, ela explora o mundo e passa a conhecê-lo como um pesquisador. Ao colocar os objetos na boca, como podemos observar em todo bebê, ele o experimenta, o explora, sua textura, sua consistência. Essas situações tornam a boca uma parte do corpo muito sensibilizada.
Para Freud (1997) este momento designa uma fase: a Fase Oral, na qual a zona erógena principal é a cavidade oral e os lábios, lembrando que zona erógena é a região da pele ou mucosa que, a partir de certos tipos de estimulação, provocam sensação prazerosa, é o órgão que fornece excitação antes que o genital seja o objeto em questão.
O órgão que antes proporcionava satisfações relacionadas aos processos orgânicos (alimentação) começa também a ser fonte de prazer. As atividades que têm como função a preservação da vida também satisfazem e isso abre a possibilidade para que esta sensação se torne independente da situação orgânica inicial.

PULSÃO E DIFERENCIAÇÃO
Assim como a criança encontra satisfação através da alimentação, do sugar o leite pela via oral, ela pode encontrar satisfação no próprio corpo sem a função de nutrição, como, por exemplo, chupando o dedo, e o que a impulsiona na busca dessa satisfação é a pulsão. Segundo Freud, a pulsão é a energia vital que todos nós temos à procura de um objeto de satisfação, o objeto da pulsão é indefinido, portanto não encontra seu fim, a pulsão não pára. Nesta fase, é pela zona oral, pela boca, que a pulsão buscará caminhos para a satisfação, a modalidade de relação com o mundo neste momento é a de incorporação do objeto, o que é amado é incorporado e destruído, ou seja, é um jeito primitivo da criança tentar tornar algo que deseja, colocar para dentro de si.
A pulsão tem como atributo universal e indispensável o seu caráter impulsivo e agressivo ela justamenteimpulsiona o sujeito, daí ele grita, esperneia, se joga no chão ou ainda expressa seu desespero provocado pela insatisfação às custa do outro.
O ser humano se organiza em suas energias pulsionais inicialmente confusas, a partir da busca por prazer e alívio para as sensações que tem no corpo, e não diferencia de onde obtém este alívio, se do próprio dedo ou do seio da mãe, mas vai percebendo que existe um tempo de espera entre o momento em que sente fome e o momento de mamar e começa então a olhar para fora de si. Neste momento ele descobre o Outro (LACAN, 1998) e, portanto, o Eu.
É com uma concorrência agressiva que a criança se diferencia do outro, é a partir deste tempo de espera que a criança percebe que Outro pode faltar, pode diferenciar então o que é seu desejo e o que é desejo do Outro, é como se o bebê perguntasse: "O que a mamãe faz quando não está comigo? O que será que ela tem mais para fazer que não cuidar de mim? O que será que ela quer?". Com a falta aparece o desejo do Outro, e nesta relação dual, onde havia a ilusão de completude, entra um modulador, o objeto. É com isso que surge a tríade Outro, Eu e objeto, este terceiro elemento aparece, e é em relação a ele que o bebê vai se posicionar.
Ele vive então uma posição ambivalente já em sua primeira experiência de satisfação: ao mesmo tempo em que suga o leite de um seio amoroso e querido, do qual recebe um pouco de satisfação, suga também um seio que lhe faz sofrer, que lhe priva de satisfação, seio que quer então destruir, devorar, a experiência da falta do objeto é bastante angustiante e intensifica aquelas fantasias orais primitivas de incorporação mencionadas. Neste momento coexistem libido e agressividade no mesmo objeto.

ESPELHO
A criança é agressiva na tentativa de se diferenciar, podemos pensar que este é um jogo com o qual o bebê aprende sobre seu corpo, sobre seu eu, porém é mais que isso, sem esta competição ele não se mexeria, a criança precisa ser agressiva para sair do lugar, qualquer movimento da criança já é ir contra a inércia, tem a ver com a tonicidade do corpo. A postura, os tapas e socos não são apenas manifestações lúdicas de exercícios de forças, são experiências que antecipam no plano psíquico a unidade funcional do corpo. (LACAN, 1998)
A realidade desintegrada da experiência do bebê em relação aos aspectos motores, cognitivos e perceptivos encontra sua unificação a partir da imagem do semelhante. No início, o bebê se comporta como se fosse a imagem que reflete o comportamento do outro, outra criança cai e o bebê chora, a mãe abre a boca e o bebê abre também na hora de comer, ele vai experimentando ludicamente movimentos a partir dos movimentos do outro, ele imita o outro, mas aos poucos vai se rebelando, vai fazendo movimentos diferentes. Essa experimentação provoca a unificação ortopédica das imagens fragmentadas iniciais, uma organização inicial que permite ao bebê a formação de um eu.
Esta rebeldia agressiva tem a ver com intenção, reivindicação, oposição, revolução, ou seja, tudo o que representa diferença, a agressividade não só permite que nos diferenciemos nesse primeiro momento de vida, quando ainda não há a distinção entre eu e Outro, mas também que nos tornemos adultos críticos. A agressividade também deve ser considerada no âmbito social, a criança precisa disputar seu espaço e não ceder facilmente, criar estratégias de defesa faz parte do desenvolvimento infantil. Para que isso aconteça é preciso dar caminho para esta agressividade, que, se descarrilada, pode se tornar patológica. A agressividade, assim como a angústia, é elemento necessário, mas, também como a angústia, em excesso pode ser danosa. Angústia demais é desamparo, agressividade demais é guerra e destruição.
A agressividade é necessária, mas precisamos encaminhá-la, e isso é possível pela via simbólica.

O SIMBÓLICO
Na psicanálise lacaniana, o Simbólico é o registro que articula o Imaginário com o Real e é tido como apaziguador (LACAN, 1969). A agressividade pode ser sublimada, pode ser reprimida, ao invés de ser atuada, pois o ser humano conta com o recurso da palavra, da mediação Simbólica. É através de uma operação simbólica que a agressividade verte em arte, palavras, atitudes, iniciativas.
A agressividade é o que movimenta a criança a agir no mundo, então precisa haver oportunidade para ocorrer esta simbolização.
A mordida pode ser uma destas oportunidades, é uma das primeiras manifestações agressivas, assim como acontece na relação ambivalente com o seio, ao morder, a criança realiza as fantasias primitivas sádicas orais. O ato de morder ao mesmo tempo propicia um prazer sádico e é via de experimentação do novo, portanto é ato agressivo que pode se tornar instrumento de aprendizagem. A mordida é ato que pode ocupar um lugar simbólico.
Existem formas de oferecer oportunidade para esta simbolização, aquela criança que ainda não adquiriu linguagem (verbal) ou não fala com tanta fluência poderá encontrar, pela mordida, a forma mais fácil de dizer alguma coisa. A mordida pode ser uma oportunidade que a criança tem de transformar em palavras aquilo que está querendo dizer, mas isso dependerá de como o adulto a recebe, de como faz a leitura do que a criança tenta demonstrar, pois o jeito que a criança e adulto irão lidar com a situação é que dá ou não caráter simbólico, estatuto de significante à mordida.

A MORDIDA
Há diferentes formas disso se apresentar na criança, há uma mordida esperada em certo momento do desenvolvimento e isso não precisa durar, mas há alguns casos mais crônicos e aí a mordida será vista por nós como sintoma, não o sintoma médico, mas o que se articula como sintoma em Psicanálise. O sintoma é uma via pela qual a criança encontra caminho para dizer de si, de seu desejo quando algo não vai bem. O sintoma faz parte da constituição do sujeito, passa a ter uma função, expressa o recalcado da melhor forma possível naquele momento do sujeito, por isso a intenção não é extirpá-lo e sim escutá-lo.
Em casos em que a criança fixa na mordida, repetindo esse ato diariamente, a mordida pode ser vista como sintoma, recurso que a criança utiliza para falar do que está sentindo. Casos como este fazem com que o adulto se mobilize, sofra com a criança e crie oportunidades na instituição para lidar com o problema, como reuniões interdisciplinares para discutir a posição da criança na sala, a criação de projetos pedagógicos com brincadeiras que trabalhem as questões, conversas com os pais para realizar as parcerias necessárias. A partir dessas falas, escutamos melhor o que esse sintoma está falando no sujeito.
Na nossa prática percebemos que o educador, na maioria das vezes, quer que a criança pare de morder, isso faz parte do seu papel, pois ele precisa educar várias crianças ao mesmo tempo, fazer com que aprendam a conviver socialmente, são necessidades que acabam sendo atrapalhadas pelas manifestações agressivas que insistem. No entanto, instrumentalizando a criança, ela poder mostrar isso de um outro jeito, o que será que ela quer mostrar com este ato? Esta é a primeira pergunta a fazer. A mordida pode ter vários sentidos: conhecimento dos objetos, expressão das ansiedades ou angústias, pedidos de ajuda, descarrego de excitação, agitação, energia, pode ainda ser mudança de posição da criança de passiva para ativa.
Um exemplo freqüente é a disputa de brinquedos, na qual a criança morde o amiguinho querendo o mesmo objeto. Nesse momento o adulto entra com o recurso da palavra dizendo que essa não é a melhor forma de conseguir o brinquedo, apresentando um outro brinquedo ou uma atividade para que a criança se interesse e perceba que há outros caminhos para lidar com ansiedades, angústias, excitações. A criança passa a utilizar a mesma zona erógena de forma socialmente aceita, gritando, falando, cantando.
Não é apenas no ato da mordida que agimos para que ela não aconteça dizendo à criança, por exemplo, "Não pode fazer isso!". É no exemplo diário que mostramos que, através da fala, as pessoas se comunicam e resolvem os conflitos, e então a criança perceberá que esta pode ser uma nova possibilidade. No momento da mordida há muito o que fazer para ajudar a criança a encontrar outras vias de expressão: a conversa tranqüila com a criança para entender o porquê da mordida, a observação das situações nas quais ela ocorre, mostrar firmeza quanto a combinados feitos junto à criança ao que se refere à mordida (insistir nos limites), dar outras opções para satisfazer os impulsos orais da criança como morder a bolacha, o brinquedo, a chupeta, mas não o corpo do colega.
Assim como há atitudes que podem ajudar a criança, há aquelas que podem prejudicar: expor a criança dando bronca na frente de todo mundo pode deixá-la mais nervosa e talvez mais agressiva; deixar a criança com o brinquedo se ela o adquiriu injustamente (pela mordida); incentivar a dar o troco.
Todas estas direções pedagógicas podem ser trabalhadas com a criança, mas na base das orientações está o lugar dado à mordida, um lugar na linguagem.
Levar em conta o momento psicossexual da criança, a modalidade de relação que tem com o objeto e a agressividade como argumento para diferenciação, permite-nos situar melhor a mordida da criança. No CEDEI, olhamos para a boca simbolicamente, como órgão através do qual a criança pode mostrar aquilo que deseja, seja pelo choro, pelo grito, pela recusa de alimento ou pela mordida, quando o adulto supõe que a criança quer dizer algo, dá lugar simbólico à mordida, dá estatuto de significante permitindo a produção de sentidos. Essa escuta do sintoma pode até contribuir para a aquisição da fala, recurso privilegiado do ser humano, tão desejado pelo educador.

Referências Bibliográficas
DUNKER, C. I. - O lúdico e o agressivo na psicose infantil: contribuições da Etologia à Psicopatologia. 1991. 225f. Dissertação(Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo 1991
FABRIS, Z. - O crime das Irmãs Papin: o tempo do espelhoWWW.rubedo.psc.br
FREUD, S. - Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. InEdição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:Imago Editora, 1997.
KUPFER, M.C.M. - Freud e a Educação: o mestre do impossível. São Paulo:Ed. Scipione, 1997.
LACAN, J. - O estádio de espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro, Janeiro, Jorge Zahar Editor,1998.
______. - A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1998. ______. - A lógica da Castração. In: O Seminário. Livro V: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1999.
ROUDINESCO, E.; PLON, M.- E. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
 



  • Electronic Document Format (ABNT)
    VENEZIAN, Juliana de Albuquerque, OLIVEIRA, Bruna Ronchi and ARAUJO, Maria Augusta da Costa. O manejo da agressividade da criança: o que uma mordida quer dizer?.. In: FORMACAO DE PROFISSIONAIS E A CRIANCA-SUJEITO, 7., 2008, São Paulo. Proceedings online... Available from: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032008000100041&lng=en&nrm=abn>. Acess on: 03 July. 2015.